sexta-feira, junho 10, 2005

Não sei bem explicar porquê - mas há algum tempo atrás deixei completamente de ler poesia. Felizmente, por vezes, gosto de contrariar as regras que imponho a mim própria. Especialmente, quando depois de algum tempo, não me consigo recordar do motivo que levou à sua instauração. Foi num desses momentos de rebeldia que peguei no Livro Sexto e me deixei maravilhar com a forma como duas ou três pinceladas chegam para pintar um quadro completo de sensações e ideais. Talvez porque seja uma leitura ao estilo IKEA (os mais puristas que me perdoem a comparação tão profana). Cada um leva um kit de montagem para casa e no final todos têm um móvel perfeitamente igual, mas totalmente diferente. Afinal um dos grandes encantos da poesia é dizer tudo sem dizer praticamente nada...

«Eis-me
Tendo-me despido de todos os meus mantos
Tendo-me separado de adivinhos mágicos e deuses
Para ficar sozinha ante o silêncio
Ante o silêncio e o esplendor da tua face

Mas tu és de todos os ausentes o ausente
Nem o teu ombro me apoia nem a tua mão me toca
O meu coração desce as escadas do tempo em que não moras
E o teu encontro
São planícies e planícies de silêncio

Escura é a noite
Escura e transparente
Mas o teu rosto está para além do tempo opaco
E eu não habito os jardins do teu silêncio
Porque tu és de todos os ausentes o ausente»



Sophia de Mello Breyner Andersen, Livro Sexto

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