terça-feira, abril 08, 2008

O Domar da Harpa

“Certa vez, em tempos idos, na Ravina de Lungmen havia uma árvore Kiri, verdadeira rainha da floresta. Erguia a cabeça para conversar com as estrelas; as raízes desciam fundo no solo, emaranhando as suas serpentinas brônzeas nas do dragão prateado que dormia por baixo. E aconteceu que um mago poderoso fez desta árvore uma harpa maravilhosa, cujo espírito obstinado havia de ser domado apenas pelo maior dos músicos. Durante muito tempo o instrumento foi estimado pelo imperadores da China, mas foram em vão todos os esforços dos que, à vez, tentaram extrair melodias daquelas cordas. Em resposta às melhores tentativas soltavam-se da harpa apenas notas roufenhas de desprezo, em desarmonia com as canções que eles gostariam de cantar. A harpa recusava reconhecer um mestre.

Por fim chegou Peiwoh, o príncipe dos harpistas. Com a mão meiga acariciou a harpa, como quem tentasse acalmar um cavalo obstinado, e tocou suavemente as suas cordas. Cantou a natureza, as estações, montanhas altaneiras e águas correntes, e todas as memórias da árvore despertaram! O doce sopro da primavera tornou a brincar nos seus ramos. As jovens cataratas, dançando pela ravina, riram-se para as flores em botão. Em seguida escutaram-se as vozes sonhadoras do Verão, com a sua miríade de insectos, o gentil tamborilar da chuva, o grito do cuco. Escutai! ruge um tigre – o vale volta a responder. É Outono; na noite deserta, afiada como uma espada brilha a lua sobre a erva molhada de geada. Agora reina o Inverno, e pelo ar cheio de neve redemoinham flocos de cisnes, e pedras de granizo ruidosas fustigam os troncos numa delícia feroz.

Então Peiwoh mudou de tom e cantou o amor. A floresta balançou como um mancebo ardente embrenhado em pensamentos. Lá alto, qual donzela altiva correu uma nuvem reluzente e linda; passageiras apenas, longas sombras rastejaram pelo solo, negras como o desespero. De novo o tom mudou; Peiwoh cantou a guerra, o embater do aço e os corcéis em tropel. E na harpa cresceu a tempestade de Lugmen, o dragão cavalgando o corisco, a avalanche tempestuosa embatendo pelos montes. Em êxtase, o monarca celeste questionou Peiwoh quanto ao segredo desta vitória. «Senhor,» replicou ele, «outros falharam porque apenas se cantaram a si próprios. Eu deixei que a harpa escolhesse o seu tema, e não soube verdadeiramente se a harpa era Peiwoh, ou se Peiwoh foi a harpa.»”


in O Livro do Chá, Kakuzo Okakura

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